e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sábado, 31 de agosto de 2013

tramando mar



trouxe-me o mar
e tudo o que nele há:
peixe pedra alga
e algo refletindo céu

fez-se lar
esta travessia corpórea
que me faz mergulhar
terrestres costas

refez o ar
sua graça marítima
e o desejo mirante
de ser rio onde

a onda diz



Natal, 1998

terça-feira, 20 de agosto de 2013

"Esau e Jacó", crítico e leitor


 
 
Machado século XX. Machado sempre moderno.  Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis. Depois deste, veio o Memorial de Aires, de 1908, ano de sua morte. Essas duas narrativas tem mais em comum do que o simples fato de serem últimos romances: são livros feitos de cadernos. Textos transcritos de cadernos. Escritos à tinta pujante do solitário Aires.

 

Esaú e Jacó é um texto sobre a diferença. Uma prosa sobre a discórdia. Uma narrativa sobre temperamentos opostos, sejam eles republicanos ou monarquistas. Uma narrativa sobre as dualidades ideológicas e existenciais que nos circundam. Um romance sobre a ternura e o tesão, a glória e a agrura, o sublime e o grotesco. Uma ficção do “desacordo no acordo”, “entre um ato e outro”...

 

Esaú e Jacó é um texto sobre o outro. Sobre o leitor. Com ele, Machado dialoga o tempo inteiro. Nesse dialogismo, o autor pede para voltar a página; sugere modos de leitura e ratifica ser melhor ler com atenção. Atento à noção de gênero, ele destingue homens e mulheres como leitores, e poupa o leitor apressado de alguns porquês. Esse diálogo com quem lê atravessa a narrativa. Nela predomina o intertexto com autores com os quais Machado dialoga ao longo de sua produção estética, como Homero, Dante, Cervantes e a Bíblia.


um Conselheiro atravessa dois romances



Como reza a “Advertência” do autor, Esaú e Jacó são os seis cadernos escritos, com tinta encarnada, pelo Conselheiro Aires. Amante da releitura, cultor das Letras clássicas, Aires escrevia bilhetes e cartas. Cordato, o diplomata não era chegado a paixões nem casamentos. “Era homem de todos os climas” (Cap. XXXII), mas preferia a solidão atravessada a sós, como Pessoa: "suave é viver só".

 

O sétimo caderno deixado pelo diplomata transformou-se no Memorial de Aires. Ambos os livros possuem como cenário a cidade do Rio de Janeiro, onde o autor nasceu em 1839. Leitores de Machado de Assis, sabemos que, desde meados do século XIX, quando a cidade do Rio era iluminada por lampiões de rua, este constitui-se seu espaço narrativo recorrente.

 

No bairro do Catete mora Aires, o ex-ministro aposentado que oferece almoços - repletos de salmão e ofícios - para os gêmeos Pedro e Paulo e a bela Flora. É também lá, no Catete, onde termina o Conselheiro “apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna.” Alguém vai morrer em Esaú e Jacó; e não é Aires. Ele e o seu memorial estarão vivíssimos no próximo (e último) romance de Machado.

 

A forma e o ruminante

 

Com capítulos curtos de belos e inusitados títulos, o romance é formado por micro-narrativas. Na verdade, o autor narra através de pequenos contos, canções sertanejas, quadrinha espanhola, ditos populares relidos. Seu texto é atravessado por versos ou pequenos poemas em prosa a serem desentranhados pelo arguto leitor.

 

Além dessa forma pouco linear para um romance escrito antes da Semana de 22, o texto apresenta personagens cujos olhos trazem a ironia acesa nas retinas. Ironia e humor. Há bastante humor em Esaú e Jacó. Humor e metalinguagem. Neste livro, o autor elucida parte do seu processo narrativo, através de um exercício metalingüístico que diz: “... porque há estados da alma em que a matéria da narração é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo.”

 

Acerca da leitura crítica, Machado dialoga com o alemão Schlegel, de Conversa sobre a poesia e Outros fragmentos que diz: “um crítico é um leitor que rumina. Ele deve, portanto, ter mais de um estômago". No diálogo que aciona com esse autor romântico alemão, o romancista carioca que rompeu com a linearidade da nossa narrativa escreve: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por ele faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade...”

 

domingo, 4 de agosto de 2013

O leitor


Cercado de letras



Amor, Analfabetismo e Nazismo. Não necessariamente nessa ordem, são esses os principais ingredientes do filme O Leitor. Stephen Daldry, o diretor, demonstra habilidade no diálogo entre letras e telas desde As Horas, filme sobre a escritora inglesa Virgínia Wollf.


Baseado no livro do escritor alemão Bernhard Schlink, O leitor é uma história carregada de três ingredientes produtivos e bastante perigosos: política, poesia e erotismo (lembrar que, para Freud, eros é também o pro-motor da desordem). A narrativa de Schlink é escrita numa linguagem clara e direta, numa forma linear; às vezes até meio previsível. Mas essa história – repleta de visibilidade e dúvidas, como a maioria das narrativas modernas – não é nada previsível.


A narrativa tem como um dos principais personagens um garoto de 15 anos. Ele conhece as farpas e o mel – do amor e dos fatos – ao envolver-se com uma mulher de 36 anos. Ela, uma ex-vigilante que encaminhava judeus para as câmaras de gás nos campos de concentração nazistas; ele, um jovem (futuro estudante de Direito) que lê Homero, Rilke, Cicero e Horácio. Além disso, vive numa família cercada de Letras (seu pai é professor de Filosofia e sua irmã estuda Literatura).


memórias do holocausto


A ficção de Schlink tem como cenário uma Alemanha pós-guerra. Tudo se passa na década de 40, marcante contexto bélico do século XX. Isso traduz-se, no filme, em cores sóbrias e tons sombrios, sugerindo o medo e a melancolia que perpassam algumas imagens de Schlink. Esse contexto bélico, os sobreviventes e suas memórias são os referentes através dos quais as questões políticas e sociais são inscritas.


Essas questões que remetem ao holocausto e ao entorpecimento aparecem com mais vigor no livro do que no filme. São muitas as indagações que atravessam a narrativa de Bernhard Schlink, começando pelas que envolvem a história e as leis: o que é o direito? Quais os papéis dos advogados e promotores numa sociedade pós-guerra? Quais os limites do “distanciamento profissional?”
 

Quanto mais a narrativa avança, mais o leitor vai sendo possuído pelas perguntas: como deve ser feita a leitura do nosso passado histórico? O que fazer com o medo, o entorpecimento e o horror que invadem “violentamente o cotidiano”? Enfim, o leitor é assolado pela grande pergunta que atravessou todo o século XX, e continua ecoando em nosso imaginário social na contemporaneidade: o que as gerações seguintes devem fazer “com as informações sobre as atrocidades dos extermínios dos Judeus?”



amor, verdade e lei
 




Entre os dois amantes rola sexo, muitas leituras (Guerra e Paz) e uma infinda "batalha verbal". A tigresa Hanna tem um “corpo cheio de força e confiante”. Ela doa para o seu “filhote”-"menino"-“pedrinha” dois elementos raros na juventude: segurança e decisão. Em troca, Michael lê.


Assim como quem lê a ficção contemporânea de Schlink, o seu personagem é também um leitor. E, como um bom leitor, ele lê principalmente a nuca, as pernas. Lê o corpo inteiro da amada. Lê também os livros em voz alta. Ao acionar o universo da leitura, o jovem leitor atende aos pedidos dessa estranha funcionária do bonde, cujo passado bélico ele só conhecerá futuramente num tribunal público.


Quanto mais lê, mais o leitor se submete às ciladas dessa Lilith no vigor da maturidade feminina. As brigas e os descompassos produzem mais intimidades entre eles. Produzem mergulhos em águas turvas. A narrativa registra as trevas e traças de uma história cujo futuro ninguém sabe, ninguém vê.


Mas a narrativa registra também os bombardeios de palavras e beijos. Cenas de sangue e poesia se alternam, se completam.  O casal grita de prazer enquanto trepa. Essa relação erótica, paradoxal, conflitante, parece uma metonímia histórica das relações políticas de um país destroçado, descompassado pela guerra.


Sem efeitos grandiloquentes nem ritmos alucinantes, O Leitor cria ritmos. É o  tipo de filme que afeta a respiração de quem vê. Isso, por um motivo atroz: aquele que narra e lê – belo, resignado, cheio de memórias – mostra que a verdade e a lei, em alguns contextos, são coisas bem distintas.