e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Formosa

 
Para Jô Medeiros
autora da primeira frase

 
Depois que aquele cachorro entrou no puteiro, não ficou pedra sobre pedra. O menino, filho de peixe, correu léguas. A dona do recinto, bobes na cabeça, parou de inclinar bandeja no salão. E a sereia, meu deus, depois que aquele cachorro entrou no puteiro, nunca mais a sereia foi a mesma. Vamos combinar que ninguém foi o mesmo depois que o cachorro entrou no puteiro: nem o menino que correu nem a dona de bobes nem a sereia dizendo o nome do peixe.

 
Para ser sincera, não foram mais os mesmos nenhum dos clientes ali presentes. Sentados à mesa, eles esperavam. Esperavam educadamente os roteiros sugeridos pelos retornos do menino, da dona que servia bandejas e da sereia que entrou com um peixe e sem nenhum voltou. Os clientes não entendiam, a tarde talvez fosse azul, a sereia tinha olhos verdes. Eles não entendiam serem eles, os clientes, os principais personagens daquela narrativa à beira mar. Azul aberto por pedras que uivam, o mar socorria a todos. Depois fez-se noite. As pedras continuaram uivando para a lua que faltava uma banda.

 
Todo mundo sabe que quando a lua falta uma banda, mudam as marés. Tudo muda, move. Move o menino a dona a sereia – todos desaparecidos. O menino corre em busca do lugar. Lugar onde não se ouve o esganiçar dos cães que assestam o ouvido na direção da baía. Igrejinha por perto. Morro branco ao fundo. Peixe frito, e um mar azul sem tamanho a inundar as fendas do olhar esbugalhado. Formosa mulher sem bobs nem bobes. Ela brinca com fogo. Brinca de marginal com trilha romântica, em pleno verão liberal pré e pós. Formosa mulher, acreditei na conversa, e a sereia? Olhei nos olhos da sereia, esqueci o cão e revi o meu mundo caiu 371.

 

sábado, 27 de dezembro de 2014

Engenharia dos ventos




Querido Joaquim

Descampados de ventos narram
no silêncio quente o renascer
de um ente inclinado ao abandono
das entranhas e ao evangelho
das pedras que respiram ao léu

Nesta selva de bichos
arbustos e infâncias no peito
transita reinos
pedra mato
rato rã
homemulher
 
 

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Sobre Saga lusa



O livro de Adriana C faz rir e pensar: “O que não pode é panicar, descontrole cognitivo, essas baixarias”. O texto é um recorte da subjetividade aflita e fragmentada que circula por nossos cenários bélicos e cotidianos, pós 11 de setembro. Narrativas que dizem muito da nossa condição doída e contraditória, das identidades inacabadas em trânsito neste início de milênio. Mas sem drama. Adriana esquece o drama na bagagem, e encara a Coisa assim: “Me erra, Coisa. Vai, sai, que este corpo não é teu.” Texto completo:

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Francisco




Ao dizer que a cúria romana sofre de “infidelidades ao Evangelho”, o papa surpreendeu, às vésperas do natal, detonando o “alzheimer espiritual” que acomete parte da igreja. Isso, sem contar a “força” que ele deu para que EUA e Cuba reatassem relações diplomáticas suspensas há mais de 50 anos. Isso não é pouco: demonstra que o pontífice atua em duas frentes: uma, interna, concernente às questões da própria igreja; outra, de mirada visivelmente externa e filiação social.
 
Se o universo religioso sofreu em 2014 de "alzheimer espiritual", o espaço sócio-político registrou, neste ano, uma altíssima taxa de violência. Este foi um ano punk. Ano de perdas e guerras (Síria, Copa, Petrobrás), no qual o Brasil - campeão em acidentes de trânsito - ocupa um bom lugar no ranking da violência mundial: matamos mais de 10 mulheres e 1 gay a cada 24 hs. Povo cordial?
 
2014 foi também o ano no qual jovens inocentes pediram, em manifestações, a volta dos militares que não permitem manifestações. Para continuarmos no universo de Francisco, lembremos que enquanto a Argentina termina o ano punindo participantes da ditadura militar dos anos 70, os nossos militares sequer assumem as 436 mortes registradas pela Comissão da Verdade (sobre este tema, sugiro uma visita ao site Memórias da Ditadura).

Sabemos que a igreja é canônica, e que todo cânone é feito em cima da tradição, do passado. Isso significa que a igreja adora olhar para trás. Quer dizer que o papa ama a tradição. Creio que Francisco também gosta do passado, mas ele tem um pé no presente que é uma lufada de vida em meio ao "alzheimer" e à violência nossos de cada dia. Ao detonar a pompa e a pose em prol dos pobres, ele é o cara! Lembra o cara mais celebrado hoje: Jesus.
 
 
 

domingo, 21 de dezembro de 2014

Caminhos Cruzados

 
Título de uma das mais belas canções do Tom Jobim, Caminhos Cruzados (Quando um coração está cansado de sofrer...) nomeia o belo blog do poeta e professor Carlos Magno. É bastante produtiva uma visita a este oásis estético e existencial, em meio ao entulho verbal e narcísico que demarca boa parte do espaço virtual: http://palavora.blogspot.com.br/2014_11_01_archive.html
 
Segundo o Dicionário de escritores norte-rio-grandenses: de Nísia Floresta à contemporaneidade, publicado por Conceição Flores, em 2014, o poeta Carlos Magno fundou o fanzine Palávora, e ganhou, em 1990, o Prêmio Othoniel Meneses de poesia. Em 2005, o ex-articulista da Tribuna do Norte e professor da UFPB foi classificado no III Concurso de poesia Luís Carlos Guimarães.

sábado, 13 de dezembro de 2014

ver go nha



Político como Jair Bolsonaro é o fim. Ao detonar os direitos humanos, e dizer que a senadora Maria do Rosário “não merece ser estuprada porque é muito feia”, o deputado do PP carioca passou dos limites. É triste e revoltante ouvir sua fala bruta na Câmara Federal. Seu discurso machista, misógino e homofóbico representa uma porção retrógrada da humanidade. Diz muito da barbárie que ainda sedimenta boa parte da sociedade brasileira.


Precisamos ouvir JB. A barbárie que ele representa, no plenário, está presente em nosso cotidiano mais banal. É preciso que este militar se manifeste. Sua performance política tem muito dos gestos autoritários dos militares que não permitem manifestações, e cujo silêncio é um enigma. Acerca disso, basta ouvirmos o eloqüente silêncio dos militares contemporâneos, frente ao relatório apresentado, esta semana, pela Comissão da Memória, Verdade e Justiça.


Passados 30 anos do fim da ditadura, os militares não assumem violências nem torturas. Perante as 436 mortes registradas no referido relatório, eles posam de revanchistas e cobram os militares desaparecidos. Esse impasse dificulta a leitura da história. Impede a evolução da cidadania e dos direitos humanos. É preciso cultivar direitos e deveres, Jair. Isso é básico para todos. Principalmente para um parlamentar ser respeitado e não ultrapassar os limites. Como você.


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A poeta e a cidade

 
Para Marília Gonçalves
 
 
 
Natal, cidade dos vagalumes,
Cidade verde, de coqueirais.
 
                 Palmyra Wanderley
                 Roseira Brava, 1929


segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Tom



 
(1927 - 1994)

sábado, 6 de dezembro de 2014

memorial


 
memória de um tempo
onde lutar por seu direito
é um defeito que mata
 
Pequena memória para um tempo
sem memória, Gonzaguinha

O site Memórias da Ditadura é uma leitura imprescindível num país cujas dificuldades de lidar com a história são evidentes. O site tem problemas de redação e faltam referências bibliográficas, mas isso não tem a menor importância. Criado pela Comissão da Verdade, este espaço merece ser visitado por quem tenta entender o nosso passado violento, autoritário e contraditório.

Manifestações recentes pediram o retorno de um regime político que não permite manifestações. Seria muito bom se a garotada que deseja a volta dos militares desse uma olhadinha aqui, vejam:

http://memoriasdaditadura.org.br/

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Gullar na ABL

...

e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida

Esses versos do poeta Ferreira Gullar fazem parte do poema “Inseto”. Esse poema está no livro “Em alguma parte alguma” de 2009. Como sabemos, este livro faz parte de uma extensa bibliografia que começou a ser construída na década de 50, sendo composta de diferentes formas como a poesia, música, literatura infanto-juvenil, o teatro, crônica, ensaio, tradução, ficção...

Dentre os livros de poesia de Gullar, pelo menos três títulos podem ser lidos como alguns dos textos mais representativos da poesia moderna produzida no Brasil do século XX: “A luta corporal” (1954), “Dentro da noite veloz” (1975) e “Poema Sujo” (1976). Alguns temas e formas desses volumes estão presentes no livro “Em alguma parte alguma”. Nele lemos novamente as frutas podres na quitanda, ou amadurecendo escuras sobre a mesa; vemos os velhos personagens do Maranhão, lemos nomes de ruas do Rio, relemos bichos (haja gato, aranha, rato...) e, dentre outros, relemos um infindo exercício metalingüístico através do qual a trindade corpo-poema-cidade ganha vida e dialoga sem subordinação lingüística ou estética.

Esse diálogo entre o corpo, o poema e a cidade vivifica o ser e o estar no espaço moderno cotidiano. A vida vira um problema de linguagens, uma demanda de espantos. Pequenas epifanias em meio às sombras e cenários em ruínas de cada dia. O escuro ganha necessidade de forma, como na abertura do poema “Bananas podres 4”:  “É a escuridão que engendra o mel/ ou o futuro clarão no paladar”
 
Sol cotidiano

É da esfera luzidia do sol mais cotidiano que Gullar desentranha grande parte da sua escrita. O poeta sente na boca “o alarido do sol”. O cotidiano é sugado pela língua, tragado pelo olho. Paladar e visibilidade engendram esse cotidiano do poeta moderno romanticamente atravessado por relâmpagos e clarões que dão cria. Muitos relâmpagos. Epifanias. Não as epifanias à lá Clarice Lispector e Caio F, onde a luz atravessa, geralmente de forma atordoada e sã, o corpo de quem vê e frui.
 
Em Gullar, a luminosidade faz a sua travessia nas próprias coisas. Luz que atravess as veredas de um cotidiano chão, de onde brota uma poesia feita de pequenos esplendores, assim:
...

mas o perfume daquelas frutas
que feito um relâmpago
desceu na minha carne
... volta a esplender

Aos 84 anos, o ex-poeta de vanguarda esplende, enfim, na ABL. Ele merece as comemorações. Merece prêmios e leituras. Na leitura madura (“A maturidade é tudo”) de Alfredo Bosi que abre o livro “Em alguma parte alguma”, o crítico indaga se materialismo e metafísica “podem conviver em amorosa tensão”. Concluída a leitura, o leitor sabe que os dois temas podem conviver sim. O leitor saber que podem casar luz e osso.

Nesta poética onde Bosi ouve Drummond, meu ouvido também escuta timbres de Minas, mas ouve também Cabral (embora uma tonalidade concretista ecoe, de quando em vez, dos muitos versos entrecortados, de algumas palavras fragmentadas ou de algumas estrofes alinhadas como nos tempos que o mundo era concreto).

Gullar osso, luz: dessa fonte ecoam, desde há muito, “Barulhos”, “Muitas Vozes”...
 
 
 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

outro Benjamin



O biógrafo americano de Clarice Lispector às vezes se acha. O B Moser se acha, mas o seu olhar sobre o Brasil provoca  que é uma beleza, vejam:

" ... quando fiz a biografia de Clarice Lispector, fiquei atônito pela quantidade de coisas que botei no meu livro que as pessoas acharam “corajosas.” Não eram. Como dizer que Mario de Andrade era homossexual. Mas tantas vezes me disseram: “Aqui não se pode falar isso. Se eu falasse isso ou aquilo perderia meu emprego no jornal, na faculdade.” Isso impera em muitas áreas. E o ruim do projeto de censura às biografias é que, como tantas coisas no Brasil, não é uma ameaça direta. Esse não é o estilo brasileiro. Mas é um aviso. Porque quem vai comprar briga com gente poderosa? Então há grandes, imperdoáveis silêncios no Brasil. A ditadura militar é um dos maiores."

Apesar de algumas idéias de Benjamin Moser, sobre o Brasil, serem discutíveis, vale a pena ver a sua mirada estética e ideológica para as formas violentas como nos relacionamos com o tempo. Em seu ensaio sobre o país, o jovem biógrafo relê o nosso in-consciente político e social, desde as formas de Brasília, até as nossas ditaduras - a militar e a intelectual das biografias censuradas, dentre outras. Olhar estrangeiro sobre um Brasil contemporâneo e suas violentas con-tradições de cada dia: